quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Santa Maria e a minha dor

 Confesso que só agora, um mês depois da tragédia, consegui escrever alguma coisa sobre Santa Maria.
Quem me conhece há algum tempo sabe da minha relação afetiva com esta cidade, terra da minha mãe, da casa da Vó Tina (na rua André Marques, em frente à pracinha), do Sítio do Pinhal, dos melhores momentos da minha infância. E a cidade onde, mais tarde, voltei para disputar (e ganhar) dois torneios de vôlei, o primeiro em 1970 pelo Colégio de Aplicação, e o segundo em 1973, pela equipe da Escola de Engenharia da UFRGS. Não pensem que eu fui um grande jogador, muito pelo contrário, eu nunca passei de um medíocre esforçado. No  Aplicação-70 eu era um mero colaborador dos craques do time,  o “Nêgo” Ciro Sirângelo, o “Gordo” Renan Oliveira, Mauro Penter, Renato Futuro e outros.  Naqueles felizes tempos nem se sonhava com a neurose politicamente correta de hoje, e todo mundo tinha algum apelido depreciativo (antes que perguntem, o meu era “Caveira”). E a gente sobreviveu sem maiores traumas... Guardo com carinho esta foto, tirada pelo Roberto Giugliani, que só não foi fotógrafo profissional porque a vida o transformou em um médico dos bons. O magrelo de camiseta branca, tentando acertar a bola, sou (fui) eu. O time era comandado com mão de ferro pelo professor Jaime Werner dos Reis, o “Peixinho”, que me transmitiu lições sobre o valor da disciplina e do treinamento que utilizo até hoje nas minhas aulas e palestras.
Um pouco mais tarde, em 1973, já na escola de Engenharia, eu completava uma equipe onde brilhavam o Hugo Pinto Ribeiro, Duio Fossati, Ricardo Felizola e mais alguns. Foi esta a última vez em que estive em Santa Maria. Afinal, dois anos depois me formei engenheiro, passei no concurso para a Petrobras e vim parar no Rio de Janeiro, onde nasceram meus dois filhos e estou radicado até hoje. Não perdi contato com o pessoal de Santa Maria, encontrei em algumas ocasiões esparsas meus primos Walter, Marlene e Marta, que vivem lá até hoje, com seus filhos e netos. Mas a prometida volta foi sempre adiada...
Por coincidência, foi de Santa Maria que veio para o Rio de Janeiro um dos personagens mais importantes da história recente desta cidade; o secretário de segurança José Mariano Beltrame. Lembro da profecia da minha mãe, no dia em que ele tomou posse; “Agora o Rio vai tomar jeito. Chamaram um cara de Santa Maria...”. Na época a gente riu muito disto; eu só não esperava é que o “cara de Santa Maria” fosse tão bom. E sempre que converso com amigos e colegas sobre as melhoras evidentes da segurança na cidade nos últimos anos, nunca deixo de dizer, com orgulho; precisou chamar um cara de Santa Maria...
Mais uma; enganei vários amigos metidos a entender de futebol, perguntando qual o primeiro jogador gaúcho campeão do mundo com a seleção brasileira. E dava logo uma dica; era lateral esquerdo. “Foi o Everaldo, em 1970”, respondiam sempre. Errado, dizia eu, feliz da vida. E demonstrava meu teorema; quem era o lateral esquerdo do primeiro título do Brasil, em 1958? O grande Nilton Santos, todos sabem. E o reserva dele? Aí, normalmente, eles se atrapalhavam. E eu liquidava o jogo; era o Oreco, jogador do Corinthians, gaúcho de onde, mesmo? Santa Maria, é claro! Não chegou a jogar (afinal, ser reserva do maior jogador de defesa de todos os tempos não envergonha a biografia de ninguém), mas foi campeão do mundo. Doze anos antes do Everaldo.
Enfim, se existe um lugar que, na minha memória afetiva, sempre esteve associado à palavra “felicidade”, este lugar é Santa Maria. E o fato de não ir lá há quase quarenta anos na verdade até ajudava; afinal, as recordações traziam o gosto da juventude, e talvez fosse melhor mesmo que a cidade nunca conhecesse o sexagenário barrigudo e careca de hoje, guardando para sempre a imagem do jovem atlético e campeão.
Tudo isto acabou no trágico domingo da boate Kiss. As minhas melhores lembranças foram embora, para sempre; afinal, por mais anos de vida que Deus ainda queira me conceder, sei que nunca mais vou recordar Santa Maria com um sorriso feliz, como antes.
O genial Carlos Drummond de Andrade, no seu poema “Confidência do Itabirano”, descrevia assim a saudade de sua cidade; “Itabira é apenas uma fotografia na parede – mas como dói”. Hoje, posso dizer que Santa Maria é apenas uma imagem na tela do meu computador. Só que, pedindo desculpas ao poeta, tenho que dizer que a minha dor é muito maior. E é para sempre.